terça-feira

Capítulo XVI

 "É Preciso Ver os Anjos"


-  Obrigado por atender meu convite, Senhora Sara Romanelli – disse o Delegado Freitas.

A palavra “convite” saiu no exato momento em que Sara depositava em cima da mesa uma folha de papel.

-  A intimação é mera formalidade – disse ele num sorriso.
-  Claro, eu entendo – disse ela.

Sara parecia tranqüila e Alberto se perguntava o que teria acontecido naquela misteriosa viagem. Ainda não tinham se falado desde que ela chegou, e tal qual o delegado Freitas, estava ansioso para ouvi-la.

-  Pois bem, D. Sara pode-me me dizer agora, com detalhes, o que foi que aconteceu durante todo aquele dia na mansão e como foi que encontrou o corpo?

Sara relatou os fatos, desde pela manhã até à noite quando voltou à mansão, porém, por intuição, omitiu o episódio com Dora e Nátali. Como também, que viu o carro de seu irmão deixando a mansão. Quando terminou, o Delegado Freitas pareceu desapontado:

-  Tem certeza que não esqueceu de nada? – interrogou ele.
-  Sim, tenho.
-  É meu dever alertá-la que atrapalhar as investigações da polícia por omitir fatos é crime senhora...
-  Sei disso delegado, já fui informada.
-  Ainda assim nega que disse ao Detetive Valdir ter visto o carro do Dr. Rômulo deixando a mansão naquela noite?
-  Sim, eu nego ter dito isso ao Detetive Valdir – afirmou firmemente.
-  Claro, perdoe-me... Eu corrijo, a senhora disse à copeira e o Detetive ouviu...
-  Disse?... Não me lembro...

O delegado soltou um suspiro impaciente. Alberto fitou-a intrigado, mas manteve-se calado. Achou melhor deixar as coisas rolarem por mais um pouco antes de interferir.

-  Eu vou lhe perguntar mais uma vez, D. Sara: Viu o carro do seu patrão deixando a mansão na noite do assassinato?
-  Não ouve nenhum assassinato – afirmou calmamente.

O delegado Freitas e Alberto encararam-na simultaneamente.

-  D. Emília suicidou-se – declarou ela

Dr. Freitas começava a transpirar. Estava a um fio de perder as estribeiras com aquela sacana. Mas estava enganada se achava que podia enrolá-lo bancando a espertinha. Logo ele que estava habituado a lidar com esse tipo!

-  Então, a senhora acha que ela suicidou-se?
-  Acho, não, eu tenho certeza!
-  E se importa em me explicar como uma paralítica foi até o escritório, abriu o cofre e apanhou a arma, uma vez que a cadeira de rodas estava trancada no quarto ao lado? – perguntou irônico.
-  D. Emília não era mais paralítica, estava andando.

Alberto sentiu o desprender de sua mandíbula, mas fechou a boca instantaneamente. Se ela estava blefando, tinha ido longe demais e estava se metendo numa encrenca sem tamanho. Nesse caso, fazer sua defesa seria algo muito mais complicado.

-  Viu-a andar? – perguntou o delegado.
-  Vi-a mexer o pé.
-  Não é a mesma coisa que andar – retrucou ele – Ademais, alguém teria que lhe abrir a porta do sótão. Pelo que sei, aquela porta era mantida trancada todo o tempo.
-  Ela roubou minha chave – revelou Sara – Se procurar cuidadosamente entre seus pertences, a encontrará.
-  Não está insinuando que estamos sendo negligentes com nossa investigação, está D. Sara?
-  O senhor está colocando palavras na boca de minha cliente – interveio Alberto.
-  Pode deixar Alberto, eu vou responder a pergunta do Dr. Freitas – interveio ela – Eu só estou tentando ajudá-lo a reunir provas de que D. Emília suicidou-se.
-  Uma chave não prova nada! – exclamou o delegado alterado – A senhora mesma pode ter colocado lá.
-  Devo lembrá-lo que minha cliente não está sob suspeita – interveio Alberto – Se não conduzir corretamente o interrogatório, posso suspender o procedimento por...
-  Está bem! Está bem! – disse ele interrompendo-o – Eu peço desculpas à Senhora, não irá se repetir.
-  Não tem importância – disse Sara calmamente – Como ia dizer, terá provas do que estou falando quando tiver em seu poder os exames periciais.
-  Os exames periciais já estão em meu poder – declarou o Delegado.
-  E havia pólvora na mão de D. Emília? – perguntou Sara.
-  Não só na mão, mas como no rosto, na camisola... O tiro foi à queima roupa. Mas não é isso que me deixa intrigado – disse ele unindo as sobrancelhas – e sim o fato de que não havia nenhuma impressão digital na arma...

Sara sentiu-se gelar por um momento, mas manteve a compostura.

-  ... Seja quem for que fez isso, limpou muito bem a arma... E suicidas não limpam armas, não é mesmo Sra. Romanelli?
-  Ela... ela pode ter usado o lençol para segurá-la...
-  E porque faria isso?
-  Eu não sei, mas o senhor, competente como é, vai descobrir com toda certeza.

                 
O depoimento se arrastou por toda a manhã e todos estavam exaustos. O delegado Freitas tentou cercá-la por todos os lados, inutilmente. Ela tinha sempre uma resposta plausível na ponta da língua. Essa vaca escorregadia! Não a peguei hoje, mas a pegarei em outro dia – pensou ele ao dispensá-la.
                
Fora do prédio e a sós com Sara, Alberto quis saber:

-  Porque omitiu sobre Dr. Rômulo?
-  Não foi ele, ia cometer uma injustiça.
-  Tudo bem se mudou de idéia, mas tinha que fazer a sua parte e deixar as investigações por conta da polícia! – contestou ele.
-  Francamente, Alberto!... Será que não percebe que esse delegado está louco para botar as mãos em cima dele, seja ele culpado ou inocente?... Além do mais eu não confio nele.
-  Nisso você tem razão, eu também não confio nele – disse Alberto – Espero que esteja certa em tudo que disse lá dentro.
-  Eu também – disse Sara. Estava pensando em Dora.
-  Acredita realmente que D. Emília estava andando? – perguntou ele.
-  Às vezes sim, às vezes não – respondeu com sinceridade – Naquela tarde, ela fez um esforço danado para nadar na piscina somente com os braços... Pode ser que ela queria apenas presentear-me. Uma espécie de celebração pelo meu empenho em reabilitá-la à vida. Ela me abraçou e chorou depois... Talvez estivesse se despedindo.
-  Tem muito mais coisa que ainda não sei, não é mesmo?
-  Tem.
-  Vai me contar?
-  Vou, mas antes tenho de ir a um lugar. Apanhe Claudine e venha jantar comigo e as meninas essa noite, então contarei tudo a todos.


                
Dora estava na cama. Os olhos vermelhos e inchados e havia perdido alguns quilos. Ela sentou-se na cama quando Sara entrou no quarto:

-  Que bom que a senhora veio! – exclamou cansada.
-  Também estou contente em vê-la aqui – disse Sara com sinceridade.
-  Tenho muito que falar... Não sei por onde começar, ainda é tudo muito confuso para mim.
-  Eu vou ajudá-la – prometeu Sara – Comece por contar-me o que aconteceu depois que Nátali a trouxe para cá na sexta-feira.
-  Ela me enganou – começou Dora – A princípio fiquei furiosa, mas depois, vendo todos esses jovens... Eles pareciam tão felizes aqui.  Não havia ninguém vestindo um jaleco branco, nem grades nas janelas, nem muros altos com portões cheios de correntes... Eu decidi ficar.
-  Então foi até sua casa buscar suas roupas e avisar seus pais? – perguntou Sara.
-  Sim, foi isso mesmo. Logo que cruzei a porta da frente lembro-me de ter ouvido um tiro... Eu estava limpa, sabe?
-  Sim, querida, eu acredito em você.
-  ... O som vinha lá de cima, então, subi as escadarias correndo. Quando cheguei ao quarto da vovó a porta estava destrancada e eu abri. Ela estava na cama... atingida na cabeça, não sei ao certo... toda ensanguentada, a arma estava no chão próxima à cama... eu me apavorei, achei que tinha alguém lá embaixo e então eu me abaixei e apanhei a arma. Papai chegou nesse momento.

Dora começou a chorar, Sara aproximou-se dela e abraçou-a:

-  Tem que fazer um esforço para se acalmar... Conte-me tudo para eu poder ajudá-la – disse carinhosamente.
-  Tudo bem, eu vou continuar – disse Dora enxugando o rosto – Papai entrou em pânico e começou a gritar: “O que foi que você fez, sua maluca!”  “Como posso acobertá-la numa coisa dessa?”  Eu dizia à ele que eu não tinha feito nada, mas ele parecia não ouvir-me, então me joguei em prantos ao chão. Ele me levantou, me abraçou e disse: “Tudo bem, tudo bem, eu vou protegê-la, vou tirar você daqui para um lugar bem longe onde ninguém poderá encontrá-la.”  Em seguida, ele limpou minhas digitais da arma com seu lenço e recolocou-a no mesmo lugar que eu disse ter encontrado-a e saímos.
-  Então, estava com ele quando o vi saindo da mansão?
-  Sim, já estávamos na garagem dentro do carro quando vimos a senhora se dirigir à entrada de serviços... Papai disse para ficarmos abaixados até que a senhora entrasse na casa, e então arrancou a toda velocidade.
-  E o que aconteceu depois?
-  Depois que saímos, ele me pediu desculpas e disse que acreditava em mim, mas eu achei que era armação, que ele ia internar-me de novo, e no primeiro sinal fechado eu saltei e saí correndo... Arrombei uma banca de revistas e escondi-me lá dentro. Vi-o passar várias vezes pela avenida me procurando. Depois de um tempo acho que ele desistiu, pois não o vi mais. Antes de amanhecer, eu saí de lá e procurei uns amigos... Daí para frente não me lembro bem dos fatos. Tenho alguns lances de lucidez, outros de total inconsciência. Nem sei como vim parar aqui.

Sara tinha uma profunda compaixão pela sobrinha e percebeu o quanto já a amava. Sentiu-se aliviada por não ter tocado no nome de Dora durante o depoimento.

-  Está segura agora – confortou Sara – Mas não acha que temos que comunicar a seus pais que está aqui?
-  Eu já fiz isso. Escrevi a eles e pedi à Nicole que colocasse no correio juntamente com a carta da vovó para o papai.
-  Carta... da sua avó... Que carta?
-  Tem uma para a senhora também na minha mochila. A vovó levou-as em meu quarto na madrugada de quinta para sexta feira. Ela estava andando a senhora sabia?
-  Eu suspeitava.
-  Pediu-me segredo e disse que eu saberia quando entregar as cartas. Acho que tencionava ajudar-me com esse voto de confiança... Pediu que me mantivesse consciente e que era muito importante que a senhora e o papai recebessem as cartas no momento certo... Eu não consegui, decepcionei-a.
-  Ainda é o momento certo, meu bem.
-  Acha que a vovó se matou?
-  Há muito que descobrir sobre isso ainda... Não pense mais nisso, pense só em você agora.
-  A vovó andava visitando-me em meu quarto nos últimos dias. Acariciava meus cabelos e beijava-me a face na escuridão... De início, achava que era sonho, mas quando me entregou as cartas foi bem real... Contou-me que a senhora é minha tia, é verdade?

Ela sabia e não me odiou por isso... Deixou-me meio bilhão de dólares!

-  Sim, é verdade... Como se sentiu em relação a isso?
-  Não sei bem. Acho que senti vontade de conhecê-la melhor.
-  Eu também me sinto assim em relação a você. Vai cuidar para que tenhamos tempo para isso, não vai?
-  Se está perguntando se vou me manter limpa daqui para frente a resposta é: não sei. Por enquanto só posso dizer que pela primeira vez em muitos anos, sinto-me motivada a lutar.
-  Já é uma grande esperança. Uma baita esperança, aliás!



Sara comprou um enorme cachorro quente, e sentou-se no banco da praça em baixo de uma árvore. Estava uma tarde quente, própria daquela época do ano. Logo mais, o vento começaria a soprar e a chuva de verão lavaria a cidade.
Um velho mendigo sentou ao seu lado, enfiou a mão no bolso do roto paletó, tirou um pedaço de pão e passou a comê-lo. Ela ofereceu seu lanche intocável a ele. Ele aceitou o presente e agradeceu com um sorriso vazio. A seguir, ela abriu a bolsa e apanhou a carta de D. Emília e começou a lê-la:
                
                                                                                 
                    Sara, minha doce amiga.

                  
                    Perdoe-me por esse M.P.C.I. sem você, mas tinha que ser assim. Vai acabar entendendo, eu sei, você sempre entendeu tudo tão bem.
                    É provável que a essa altura já saiba quem eu sou. Isso mesmo: eu sou aquela mulher de luvas e chapéu que você viu saindo de sua casa quando ainda era uma garotinha. Que posso eu fazer contra essa dura realidade? Nada. Nada que eu fizer ou disser, vai apagar isso. Como também, nada poderá apagar os maravilhosos momentos que tivemos, e isso me é tão reconfortador!
                    Não tenho muitas coisas a dizer-lhe, pois creio que lhe disse tudo quando ainda estávamos juntas. A não ser que, outro dia, abri minha janela e olhei para o céu. Então comecei a entrar numa espécie de transe, e finalmente eu vi. Eles vieram às dezenas, centenas, e em pouco tempo eram milhares. Sim, milhares de anjos, que mais pareciam luzes faiscantes flutuando no céu, bem diante dos meus olhos! Desejei muito contar isso a você.
                    Escrevi também ao Rômulo. Não perdi tempo com essa bobagem de mãe e filho, por que não há como ser mãe em umas poucas palavras. Eu lhe falei a seu respeito, disse-lhe o quanto iria lucrar em ter uma irmã como você.
                    Há uma cigarra cantando ao longe nesse momento, e eu fico a imaginar se alguém estará disposto a ouvi-la. Acho que vou fechar os olhos agora e ouvi-la atentamente, pois assim, ela não cantará em vão. Era o que você faria se estivesse aqui.

                        
                    Emília.
 

Ps.:  Você ganhou  jogo.

                  
Sara redobrou a carta, colocou-a de volta no envelope e guardou-a na bolsa. Que bom que tinha lágrimas para chorar.
O velho mendigo estendeu-lhe a mão fechada. Ela aparou a mão em concha para receber o presente.

-  São sementes – informou ele – Eu recolho da calçada todos os dias aqui na praça. Não conseguem brotar no cimento, só se encontrarem terra boa.
-  E por que está me dando? – perguntou Sara.
-  Não tenho mais nada para dar – disse ele – É pouco, mas se plantá-las, crescerão e se tornarão grandes árvores. Então, servirão de abrigo para os pássaros.
-  Eu vou plantá-las – prometeu Sara – Encontrarei uma boa terra para elas.


                  
A campainha do despertador disparou: 5:45h da manhã. Sara apalpou no escuro à procura do botão. Só então se deu conta de que não havia mudado o despertador, ele continuava a despertá-la todos os dias no mesmo horário. Não tenho mais que ir trabalhar – pensou. Virou para o lado e dormiu.

Acordou perto do meio-dia com o corpo todo dolorido de tanto ficar na cama. Espreguiçou-se demoradamente e foi até o banheiro. Olhou-se no espelho: Meu Deus, como estou horrível!  Foi até a cozinha e viu a mesa do café da manhã posta pelas gêmeas carinhosamente para ela. A campainha da porta tocou quando estava quase terminando seu café. Droga! – pensou. Tudo do que ela não precisava naquele momento, era a vizinha do quarenta quatro pedindo o aspirador de pó emprestado. Foi abrir. O imenso buquê de flores do campo não lhe permitia ver o rosto. Na outra mão, uma garrafa de champanhe.

-  Leo! – exclamou feliz e se atirou em seus braços achatando as flores – Quanta saudade!
-  Deu para notar.
-  Porque não avisou que ia chegar?
-  Não gostou da surpresa?
-  Eu adorei!

Ela o arrastou para dentro e deu-lhe um beijo demorado.

-  O que vamos comemorar? – perguntou Sara referindo-se ao champanhe.
-  Consegui um investidor! – declarou ele em euforia – Mal pude esperar para lhe contar.
-  Oh, meu amor, estou tão feliz com essa notícia...
-  Ele ficou impressionado com os meus projetos e resolveu investir na fabricação dos materiais... Ainda tive tempo de presenciar as primeiras unidades sendo fabricadas...

Ele parou de falar de repente.

-  ...Eu menti a você – disse constrangido – Perdoe-me, Sara, mas não podia lhe contar... Você vivia dizendo que eu estava esperando um milagre...
-  Você é o milagre, meu amor. Sabia do testamento e ainda assim foi correr atrás do seu sonho.
-  Já soube do testamento?
-  Já.
-  D. Emília me procurou, queria assegurar-se de que eu a convenceria a aceitar a herança. Ela me contou toda a história e me fez prometer que não contaria nada a você por enquanto... Disse que era para protegê-la, e foi ela quem acabou sendo assassinada...
-  Ela suicidou-se.
-  Tem certeza disso?
-  Tenho, ela me deixou uma carta. Eu vou lhe contar tudo.

         
Naquela tarde, Sara voltou à mansão para apanhar seus materiais de pintura e outros pertences que ainda estavam lá. Ela acabava de carregar o porta-malas do carro quando Rômulo estacionou na garagem. Uma tela pintada por D. Emiília estava em suas mãos quando ele aproximou-se para cumprimentá-la:

-  Pensei que poderia ficar com isso – disse ela – Foi sua m... foi D. Emília quem pintou...
-  Claro, pode levar o que quiser – disse ele.
-  Obrigada.
                         
Ela fechou o porta-malas e preparava-se para entrar no carro.

-  A propósito... – chamou ele – Queria lhe dizer que... bem... Eu menti quando disse que os seus quadros não valiam nada... Na verdade eu... gosto muito deles, são realmente bons e não pretendo abrir mão deles.
-  Aprecio seu elogio – disse ela abrindo a porta do carro.

-  Sara... – chamou novamente e se aproximou um pouco mais – Gostaria que viesse jantar conosco uma noite dessas com sua família...
-  Iria gostar muito.
-  Temos muito que conversar e... ando meio ansioso de saber tudo sobre você e... como era a nossa....  mãe.
-  Também estou ansiosa em saber tudo sobre você.

Ele fitou-a com ternura pela primeira vez.

-  Acho que lhe devo desculpas – disse ele.
-  Não, eu é que devo lhe pedir desculpas... Desconfiei de você.
-  Eu também desconfiei de você e de seu marido.
-  Como soube do testamento e que Leo estava a par dele?
-  Ouvi-a por acaso falando ao telefone com Salgado naquele dia da discussão... Tinha ido ao sótão tratar de assuntos das tecelagens e ela estava deitada de costas e não me viu chegar... Acabei por tirar conclusões precipitadas.
-  Todos nos tiramos conclusões precipitadas, mas felizmente já passou – disse Sara – Só não consigo entender por que ela fez isso... Parecia-me tão cheia de vida...
-  Ela estava condenada, Sara.
-  Como assim, condenada?
-  Ela tinha um tipo raro de aneurisma no cérebro. Só o Salgado sabia disso.
-  Deve estar enganado...  Eu saberia...
-  Ela escondeu de você – declarou ele – Queria poupá-la, ou quem sabe, achou que a forçaria a se internar para uma possível cirurgia e não havia nenhuma possibilidade quanto a isso.
-  Eu não compreendo... Deveria haver algum tipo de tratamento...
-  Não, não havia. Era uma espécie de bolha e poderia estourar a qualquer momento. Poderia ocorrer uma morte instantânea ou deixá-la em coma por meses. Até anos.
-  Há quanto tempo ela sabia disso?
-  Há dois anos. Os médicos estavam surpresos que ela ainda estivesse resistindo.
-  Como foi que descobriu sobre o aneurisma?
-  Ela sentiu fortes dores de cabeça num final de semana e chamou por Salgado que a levou numa clínica. O médico desconfiou do diagnóstico e pediu uns exames. Constatou de imediato a impossibilidade de uma cirurgia
-  As tais visitas às tecelagens que ela dizia fazer! – lembrou Sara.
-  Ela nunca esteve nas tecelagens. Eram visitas ao médico.
-  E as vitaminas que ela nunca deixou de tomar...
-  Eram medicamentos fortes para tirar a dor. Salgado comprava-os e ela trocava os frascos.

Sara pode entender as atitudes de D. Emília nos últimos tempos:

-  Ela quis sugar a vida até sua última gota...
-  E corrigir o passado – acrescentou ele – ...Quero que saiba que concordo com o testamento. Ela agiu com justiça.
-  Lucrei mais em saber de você – disse Sara com doçura na voz.
-  Eu também. Ela escreveu-me isso em sua carta.

Sara sentiu urgência em se jogar nos braços dele pela primeira vez, mas conteve-se. Teria a vida inteira para isso, e afinal, era provável que já tivessem se abraçado: no útero.

-  Tenho que ir agora – disse ela.
-  Ainda teremos de nos encontrar muitas vezes, afinal somos sócios agora.
-  Não, nunca fui boa para os negócios... Sei que cuidará de tudo muito bem.
-  Sobre Marilin... Ela não é tão ruim quanto parece, só é meio solitária. Gostará dela quando conhecê-la melhor.
-  Estou certa que sim.
-  Dora escreveu-me, está num lugar bom... Disse que por enquanto é segredo, mas poderei visitá-la em breve. Encontrei esperança em suas palavras.
-  Ela vai se recuperar – afirmou Sara – Amadureceu muito nos últimos dias.

Ela entrou no carro e deu a partida.

-  Sara... – chamou ele, parecia não querer deixá-la partir – Sabia que era especial quando a conheci... Senti alguma coisa... Queria que você soubesse.
-  Obrigada por ter me contado. Eu senti a mesma coisa – confessou ela – Mas não foi nada comparado a que eu estou sentindo agora!


À noite, na cama, ela contou ao Leo o encontro que tivera com o irmão e o quanto se sentia feliz em descobri-lo.

-  Porque não o convida para inauguração da clínica? – sugeriu ele.
-  Sabe que acaba de me dar uma ótima idéia?...  Falarei com Plínio amanhã, ainda dá tempo para prepararmos tudo para a véspera de Natal. Será uma linda festa!
-  E também uma boa oportunidade para ele saber um pouco mais sobre você com a apresentação da peça teatral do Plínio.
-  Não tinha pensado nisso – disse ela.
-  E o que vamos fazer agora que estamos milionários, você já pensou nisso?
-  Ainda não... Acho que vou matricular-me numa escola de artes, acha que estou velha para isso?
-  Velha, você? Só está engatinhando...
-  Acho que vou querer conhecer todos os continentes desse planeta e descobrir se há anjos no céu por lá... Também tenho muitas sementes de árvores para plantar... Preciso encontrar terra boa...
-  Sara!  Do que está falando afinal?
-  De mim, de você e do futuro... E de como é bom viver!


                                                

Um comentário:

  1. Prezada Bia.
    A história em si já é empolgante, o suspense, a maneira como está escrita fazendo a gente querer o próximo capítulo... O desenlace foi especial, o que mais gosto na sua história é a exploração completa que você faz do lado bom das personagens - por exemplo o lance do mendigo, a atitude de Sara e depois a dele. Claro que vou aguardar o epílogo. E, cá entre nós, o seu livre merece ser publicado.
    Grande abraço, até o epílogo!
    Adh

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco